Educação, ambiente de tensão?

18/06/2014 18:03

A educação é uma arte, cuja prática deve ser aperfeiçoada por gerações. Cada geração, equipada com o conhecimento das anteriores, sempre pode realizar uma educação que desenvolva uma forma proporcional e de acordo com todas as disposições naturais do homem e, assim, levar toda a espécie humana ao seu destino.

Immanuel Kant

 

Venho expondo nestas páginas as condições e a percepção da maioria dos docentes profissionais de bom senso em relação à educação básica na contemporaneidade. Também fiz várias colocações quanto à falta de significado, de construção para o aluno, na execução desta com o máximo empenho de seus protagonistas. Ao mesmo tempo apontei algumas soluções para melhorar a oferta de forma que seja possível a todos construírem transposições que dê mais sentido ao processo educacional e com isso melhorar o desempenho de todos. Façamos uma análise mais detalhada do processo educacional e seus componentes.

Os fundamentos para a construção curricular nos sistemas de educação têm por base os documentos propostos pelo Ministério da Educação (MEC), elaborados pela Secretaria da Educação Básica, e o principal deles são os Parâmetros Curriculares Nacional, tanto do Ensino Fundamental, nos dois segmentos e do Ensino Médio. Outro documento importante são as Orientações Curriculares que a apresentação traz a seguinte proposta:

 

Ao tratar da organização curricular tem-se a consciência de que a essência da organização escolar é, pois, contemplada. Por outro lado, um conjunto de questões emerge, uma vez que o currículo traz na sua construção o tratamento das dimensões histórico-social e epistemológica. A primeira afirma o valor histórico e social do conhecimento; a segunda impõe a necessidade de reconstruir procedimentos envolvidos na produção dos conhecimentos. Além disso, a política curricular deve ser entendida como expressão de uma política cultural, na medida em que seleciona conteúdos e práticas de uma dada cultura para serem trabalhados no interior da instituição escolar. Trata-se de uma ação de fôlego, nela está envolvido crenças, valores e, às vezes, o rompimento com práticas arraigadas. (p.8-9)

 

Não pode ser diferentes, pois a educação como processo, impossibilita a existência de condições estanques, ela é contínua e progressiva, desde a primeira até a última etapa. Entretanto, a ruptura entre estas etapas deve estar bem definida, por isso a separação dos espaços por ciclo fará essa definição de progressão contínua. Pois, ao passo que a criança muda de idade, muda de ambiente de aprendizagem. Essa condição vem ao encontro da proposta no que se refere à epistemologia. Quanto à construção curricular no que diz respeito ao segundo ponto apontado pela citação, sobre a sua a dimensão histórico-social, não há de ser, num todo, diferente dentro de um dado Estado da Federação, portanto a construção de um currículo comum, bem como a sua prática, não é de todo equivocado. Pois como se quer construir no aluno o sentido de protagonismo, devido à movimentação das pessoas dentro do Estado, o aluno não pode ser prejudicado quando da mudança de seus pais que o fazem por diversos motivos, este não pode ser punido pelo recomeçar, mas sim continuar de onde parou.

Existe um equívoco por parte de muitos professores e que os gestores não dão a menor importância. Este equívoco, em particular, é o da falta de compromisso com o currículo, ou seja, a gestão do currículo estabelecido no desenvolvimento do processo educacional. O currículo é parte integrante, primordial para promover melhor desempenho de todos os envolvidos no processo ensino-aprendizagem. O que se perde com isso, na verdade, mais do que a qualidade do processo, é o sentido de rede de ensino, pois, o que se aplica, com relação ao currículo, em uma Diretoria Regional de Ensino, em uma cidade, em uma escola, quando se divide a educação nacional em sistemas de ensino, deve-se, obrigatoriamente, estar sendo seguida por outra desse mesmo sistema. Eis aí o sentido de conjunto, pois não existe concepção de rede se não houver estreita interligação entre as unidades participantes.

Muito embora o processo educacional em si dependa da unidade das ações para seu pleno desenvolvimento, o que se percebe na prática é que esse processo se estabelece a partir da tensão quase insuportável entre seus efetivos realizadores, ou seja, por um lado, a gestão central (governo) divide o quadro docente em categorias, salários etc. e por outro, os próprios docentes se dividem pela multiplicidade curricular. Assim, os professores se isolam entre si, conforme sua própria percepção de ensino. Com efeito, o sentido de conjunto desaparece totalmente, ou seja, se desfaz sem que ninguém se de conta do estrago. Essa condição, a de viver nessa constante tensão, compromete a qualidade de vida do professor desfazendo-se o sentido de profissão e, consequentemente, a do processo ensino-aprendizagem, dada tamanha fadiga de seus atores.

Muito provavelmente existirão aqueles que discordem desta abordagem, mas isso tem a ver com a concepção particular de escola como unidade e não como rede de ensino. Essa confusão é comum e tem por abrigo aquilo que expus no parágrafo anterior. A dissolução dessa tensão não é nada fácil, uma vez que a própria gestão central não abre mão da sua condição arbitrária extremada, exercida com certa naturalidade e disfarçada pelo discurso de política educacional.

Não estou tentando negar com isso que o Processo Educacional não se estabelece a partir de um programa de governo, que tem por base uma ideologia partidária construída a partir de um plano de poder e que tem por objetivo se popularizar para a manutenção desse poder, seria ingenuidade de minha parte. Entretanto, no mesmo compasso, porém com bem menos poder, também os professores se alimentam por outras ideologias partidárias, diversas, construídas a partir de sua formação acadêmica, de sua militância política e social. Com efeito, o processo educacional está repleto de ideologias de construto político-social antagônicas, que se desfaz pela tensão entre seus atores, tornado-se campo de batalha política partidária na qual os alunos, por sua vez, de protagonistas passam a serem meros espectadores que, sem entender o que está acontecendo, são incapazes de construírem um significado que dê sentido a ação que estão praticando, o estudar. Deste modo, eles continuam a se perguntar, inconscientemente, o porquê de estarem estudando, sem obter uma resposta que dê outro significado que a não o da obrigatoriedade.

Neste ponto chego a me lembrar do que escreveu Tardif[1] enquanto reflete sobre o saber docente, ele expõe que:

 

O modelo tradicional da formação solucionava o problema do saber profissional da seguinte maneira: os universitários produziam saberes e os professores os aplicavam. Mas, com as reformas atuais, esse modelo foi quebrado ou declarado ilegítimo. Qual a consequência disso? Uma nova situação complexa na qual as relações entre os conhecimentos dos universitários e os saberes dos práticos estão desestabilizadas. De fato, como vimos, a tendência dominante atualmente é de reconhecer que o prático do ensino possuem um saber original, oriundo do próprio exercício da profissão, que chamamos, conforme o caso, de “saber experiencial”,”saber prático”, “saber de ação”, “saber pedagógico”, “saber da ação pedagógica”, etc. Mas essa tendência redunda em questões difíceis. (p.297)

 

E arremata alertando que:

 

Definitivamente, embora estejam assentadas em objetivos relativamente claros, as reformas deixaram em aberto a questão do saber dos professores vinculada à sua identidade profissional e ao papel que desempenham. Enquanto a década de 1990 foi dominada pela implantação das reformas, pode-se esperar que a década que se inicia seja dominada por tensões e até mesmo contradições entre diversas concepções do saber dos professores e, de maneira mais ampla, de sua função tanto na escola quanto na sociedade. (ibidem p.303)

 

Além dessa tensão, ou até mesmo pela existência dela, a estrutura física montada para aplicação do Processo Educacional se dá por instâncias hierarquizadas de micropoder, mas não estão ali para solução de problemas de sua implantação, mas apenas como fiscais cobradores de resultados. Muito embora, compostas por membros que deixaram de ser atuantes em sala de aula – esta é obrigatoriedade para ocupar os cargos –, passaram a ser docentes de gabinetes que, tão logo designados, rapidamente se desfaz da sua origem lavrada no alarido das crianças e pelo pó de giz. Entre eles estão os técnicos das coordenadorias de gestão, dirigentes, supervisores, coordenadores dos núcleos pedagógicos, cargos das diversas instâncias que devem monitorar, cobrando resultados em efeito cascata, o Processo Educacional como um todo e nas escolas ainda existem dois outros cargos, o de direção e coordenação pedagógica que, em conjunto deve dar suporte para a sua aplicação, e que se tem como responsáveis diretos os professores, verdadeiros organizadores e aplicadores, mas apenas no que diz respeito ao Processo Ensino-Aprendizagem, que sem a perfeita aplicação do Processo Educacional, se tornam atores insignificantes.

 
 
Por favor, mande suas críticas, sugestões, comentários para prof.silveira.filosofia@gmail.com, muito obrigado

[1] TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 11ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2010.