Conceituando Educação

15/06/2014 16:02
“Ninguém ensina nada a ninguém, mas as pessoas também não aprendem sozinhas. Os homens se educam entre si mediados pelo mundo".
Paulo Freire
 
 

Começar a esboçar o pensamento com um citação de Paulo Freire é, na verdade, buscar o suicídio intelectual. Homem que viveu a práxis educacional e desenvolveu toda uma metodologia de ensino voltada a alfabetização de adultos. Ele enfatizava que, como professor, era um político, pois falava e esse pensamento aristotélico do homem político é de suma importância para todos nós, professores ou não, pois educadores, todos somos. Em sua vasta obra encontramos vários posicionamentos teóricos, como o de Gramsci e de Sartre, intimamente ligada a corrente de esquerda, o pensamento freireano também tem forte apego a fenomenologia. E é por esses e outros pontos que expressei sobre o suicídio intelectual em começar estas páginas citando esse gigantesco professor.

Entretanto, a mim ele também é uma inspiração, dentro e fora da sala de aula. Pouco entendido quando o assunto é a práxis educacional, mas muito badalado, citado, mas não copiado, ele fala como educador de profissão, além do fato de seus escritos está expresso que, como tal, nós temos que nos posicionar de forma exemplar, e neste ponto ele também é aristotélico. E não abre mão da disciplina no momento do estudo, no debate ou na roda de cultura, como ele denominava suas aulas, na verdade ele é invejável. Sem diálogo não existe possibilidade de construção de conhecimentos. Não será isolado que uma pessoa conseguirá desenvolver-se intelectualmente, portanto, a aula é um momento único de relações políticas, acima de tudo, democráticas, pois todos têm sua vez de falar, de se posicionar diante de uma situação problema.

Neste primeiro momento quero apresentar a definição, o conceito, como queiram, de como eu entendo a educação. Esta não é apenas um processo de estudo, de transmissão de conhecimentos adquiridos por gerações anteriores, mas acima de tudo de hominização.

Hominizar, portanto, é transformar a coisa animada, ambulante, em ser humano, em um ser capaz de ver, refletir e agir dentro de um padrão que não é meu, não é seu, mas que é imposto pela sociedade na qual vivemos. Não falo aqui das muitas ideologias (capitalistas, liberais, socialistas etc.) que imperam nos sistemas educacionais, mas sim, o simples processo de socialização, pois, “a natureza modificada pelo trabalho humano não é apenas a do mundo exterior, mas também a da individualidade humana, pois nesse processo o homem se autoproduz, isto é, faz a si mesmo homem” (ARANHA, 1996. p.17).

 Nos livros de sociologia encontramos as etapas dessa socialização, como sendo a primária, a partir do nascimento, na íntima vivência familiar, e a secundária, a partir da rua, do maternal, do ensino infantil e assim por diante. Porém, a socialização secundária, que em virtude dos novos ofícios dos membros das famílias, está começando mais cedo. Pois, com a necessidade de aumento de renda, apenas para a sobrevivência com certa dignidade, tanto o pai quanto a mãe são hoje trabalhadores externos à sua residência e, portanto, têm que colocar seus filhos no maternal e neste espaço social que está se dando a socialização primária, longe do afeto que só a mãe e o pai podem transmitir com mais intensidade. Certamente, na condição socioeconômica que se vive no Brasil, não tem como ser diferente, e a escola se torna a habitação primordial de desenvolvimento social de nossas crianças.

No meu tempo de escola primária (1968-1972), dizia-se que a professora era a nossa segunda mãe, assim o respeito era dado como tal. Não sei se considero essa fala piegas ou, de fato, verdadeira. Muito embora de forma menos semelhante, existe uma discussão em torno desse assunto e os argumentos são diversos, pois, os professores, as professoras, de modo geral, não aceitam a ideia de escola e que a educação, no que se refere ao comportamento, obrigatoriamente vem de casa, é unicamente problema dos pais e que eles, professores, professoras, estão ali para passar conhecimentos.

Com isso chega-se a dividir a educação em duas potências, dois verbos distintos, ou seja, a que deve ser originária de casa (socialização primária), é essa com os pais, ou seja, o educar e o da escola (socialização secundária), com os professores, e se resume no ensinar. Mas será possível estabelecer essa distinção de tal modo que se divida o ofício dos professores, dos pais e dos alunos?

Certamente não é fácil, principalmente pelo fato de que a nossa educação escolar já é, em si, totalmente fragmentada e vários agentes perpassam pelos anos de estudos, porém separados, sem algo facilmente perceptível que os ligue a não ser a instalação da sala de aula e isso vai desde os segmentos iniciais até os finais. Entretanto o pleno desabamento, no que se refere aos resultados, se estabelece nos últimos três anos da educação básica, o ensino médio.

Muito embora eu trate especificamente desta fase mais adiante, saliento aqui que é neste segmento, mais precisamente na segunda série, na qual o sujeito já está mais consciente e, por isso, passa a exibir sua completa insatisfação com o processo, deixa de perceber o ensino como algo importante na sua formação, pois neste ponto, mais claramente que em outros anteriores, o processo educacional deixa de fazer sentido na sua vida e é neste ponto, mesmo de forma inconsciente para a grande maioria dos alunos, surge uma pergunta perturbadora: estudar, para quê?

Entretanto, quanto aos alunos, eu reservo o direito de considerá-los vítimas de todo o atual processo educacional, e com isso, todo e qualquer resultado que estes apresentem, com efeito, é culpa única e exclusivamente nossa, adultos, educadores, sociedade, pois, estes sujeitos ainda são dependentes dos adultos, e lembro que:

 

No início do processo, o educando tem uma experiência social confusa e fragmentada, que deve ser levada a um estádio de organização. Nesse sentido, o professor Dermeval Saviani define a educação como “um processo que se caracteriza por uma atividade mediadora no seio da prática social global”.(ARANHA, 1996. p.51)

 

É evidente que a educação, como processo, não estabelece momentos estanque, essa situação se totaliza no momento crucial da vida do jovem. É nesse momento que a pressão social e familiar fala mais fortemente na tomada de decisão, profissão, trabalho, formação, porém, existe uma imposição interior que clama por identidade, grupo social, realidade, subjetividade etc.

Ninguém nasce bandido, banqueiro, político de carreira, médico, professor etc. Nascemos todos iguais, uma coisa que a sociedade define como ser humano. Mas essa humanidade só é despertada a partir da construção do sujeito visando a um objetivo primário, que se torne sujeito que reconheça a si e aos demais sujeitos. Com efeito, todo e qualquer transtorno que esse sujeito carrega consigo, é máxima culpa da sociedade que o construiu, ou melhor, da forma como se estabelece essa sociedade. E quem mais estuda é quem mais desenvolve a consciência de si no mundo, portanto, é mais culpado do que aquele não teve acesso a igual posição, pois:

 

A conexão da estrutura social e política com a produção. A estrutura social e o Estado decorrem constantemente do processo de vida de determinados indivíduos; mas destes indivíduos não como eles poderão parecer na sua própria representação ou na de outros, mas como eles realmente são, ou seja, como agem, como produzem materialmente, como trabalham, portanto, em determinados limites, premissas e condições materiais que não dependem de sua vontade. (MARX E ENGELS, 1984, p.21)

 

Estabelecendo com mais precisão esse processo de socialização, de forma a fundamentar o pensamento, Kant, na obra “Sobre a Pedagogia”, em que ele escreve sobre educação, expressa que é a geração anterior que forma a geração futura, oras, não tem como negar isso e se não se pode negar, devemos ser sinceros e carregar essa culpa na mente antes de acusar aqueles que estão em formação, pois somos nós que estamos formando esta nova geração.

A própria palavra “formação” impõe a percepção de fôrma, padrão, molde etc. Assim, este aspecto da hominização, tanto na socialização primária como na secundária, se estabelece a partir do contato com o outro que do mesmo modo, foi e está sendo construído.

O que pretendo deixar claro é essa impossibilidade de separação entre o educar que vem de casa e o ensinar praticado na escola, ambas se confundem a ponto de não ser possível separar os espaços onde ambos acontecem e com isso, muitas vezes, tem levado a uma visão dicotômica. A escola e a casa se confundem, os professores e os pais se completam visando a hominização do sujeito dependente de orientação, ou seja, de moldagem socializante. E é só por isso que o exercício ideológico acontece dentro dos sistemas educacionais, tanto através das políticas públicas como na prática aplicada no dia a dia da sala de aula.

Para ser mais claro, uso das palavras da professora Ana Lucia de Arruda Aranha que, na obra “Filosofia da Educação”, esclarece que:

 

Educação é um conceito genérico, mais amplo, que supõe o processo de desenvolvimento integral do homem, isto é, de sua capacidade física, intelectual e moral, visando não só a formação de habilidades, mas também do caráter e de personalidade social. O ensino consiste na transmissão de conhecimentos, enquanto doutrinação é uma pseudoeducação que não repeita a liberdade do educando, impondo-lhe conhecimentos e valores. Nesse processo, todos são submetidos a uma só maneira de pensar e agir, destruindo-se o pensamento divergente e mantendo-se a tutela e a hierarquia. (p.51)

 

Enquanto que no livro “Nietzsche Educador”, Rosa Maria Dias coloca que para Nietzsche, a formação autêntica não é uma volta ao “eu” verdadeiro, mas o desmascaramento dos obstáculos fictícios que entravam a cultura do “eu”. Assim, o “eu” é uma construção, um “cultivo de si” permanente. Para ousar ser um “si mesmo”, é preciso antes de qualquer coisa uma tarefa educativa.

Até aqui, na tentativa de deixar claro o conceito de educação, propositadamente, apenas apontei de passagem seus protagonistas, mas é pelo fato de que os considero vítimas dos processos. Porém, como pais e professores, sendo que os segundos têm essa tarefa em suas casas e fazem de conta que não exercem essa mesma função na escola, os alunos vivem essa confusão entre os verbos apresentados e os espaços onde eles devem ser conjugados. Observa-se esse posicionamento em todas as vezes que se chamam os pais na escola, para falar dos problemas de aprendizagem, os professores apresentam o problema como o da postura do aluno durante as aulas.

Aparece aí uma indução com características de dedução, pois, se a incapacidade do aprender se dá pela postura inadequada, e isso é falta do educar e não do ensinar, então, nós professores, não somos responsáveis pelo fracasso escolar, mas sim os pais. Entretanto, nem um, nem o outro são, de todo, culpados pelo fracasso dos alunos, mas a sociedade que não fiscaliza o desenvolvimento do processo educacional, sendo que foi esta mesma sociedade a constituiu.

A escola, como tentáculo do Leviatã, falha por se tornar algo incômodo, chato, repetitivo, tendo que ser, por isso, imposto pelos pais, professores, sociedade. Tanto assim que, no livro “A Reprodução”, Bourdieu e Passeron argumentam que:

 

A ação pedagógica é objetivamente uma violência simbólica, num primeiro sentido, enquanto que as relações de força entre os grupos ou as ou as classes constitutivas de uma formação social estão na base do poder arbitrário que é a condição da instauração de uma relação de comunicação pedagógica, isto é, da imposição e da inculcação de um arbitrário cultural segundo um modo arbitrário de imposição e de inculcação (educação).

 

Vejo constantemente alguns professores expressar sentimento de saudade da antiga escola, e cá entre nós, eu participei de um bom pedaço dela e nesse tempo, a violência não era apenas a simbólica, como aponta Bourdieu, mas também física. A discriminação, a exclusão era a tônica. Uma classe superlotada não somava mais que 20 alunos, todos em carteiras parafusadas ao solo, demonstrando assim a imobilidade, o determinismo. Se gaguejasse na leitura, pancada e se errasse a tabuada durante a chamada oral, lá na frente de todos da classe, puxão de orelha, de cabelo e tudo isso porque não foi decorada a lição. Na verdade éramos vistos como depositários de conhecimentos estabelecidos, decoradores de textos e resultados; aprender, bem, você sabia sem saber e isso não é conhecer.

Desde que a reforma do sistema educacional brasileiro, que surgiu durante a ditadura militar a partir das alterações da Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional de 1961 – lembrando que esta foi construída a partir do amplo debate social –, pelas leis 5.540/68 e 5.692/71, além dos diversos acordos entre o MEC e Uaid (Ministério da Educação e Cultura e United States Agency for International Development), pelos quais o país recebeu assistência técnica e cooperação financeira para implementação da reforma (ARANHA, 1996b, p.213), ainda, em essência, ela é parcialmente aplicada, pois este ainda não foi de todo reformulada, mas sim ampliada, atualizada, mas para tanto há que comparar com a Lei 9394/96, o que farei em capítulo específico.

Mas quanto à antiga educação – coisa socialmente aceitável à época –, se chegássemos a nossa casa e falássemos a nossos pais que tínhamos sido agredidos pela professora, ou pelo professor, a fala era uníssona, estude mais, preste atenção, não dê motivos etc. Não culpo a meus pais, de forma alguma, pois no tempo de escola deles a situação era ainda pior.

A escola, vista pela sociedade de então, tinha como propósito a doutrinação, ou seja, como formadora de caráter e, por isso, ditava os espaços e as posições sociais, pois os mais abastados recebiam tratamento diferenciado ao que era dado aos pobres. Como o espaço era único, pobres e ricos na mesma sala, pelas atitudes dos professores se impunha a posição social, os pobres apanhavam, os ricos não e assim, ficava bem marcada a diferença entre ricos e pobres a partir dos bancos escolares. Outra coisa que é importante salientar sobre essa época (décadas de 1968 a mais ou menos 1980) é quando ao acesso a informação, ou seja, a única, de fato, era a escola. A televisão ainda não exercia influência sobre as crianças, o cinema era muito caro para a maioria, assim sobravam as brincadeiras na rua, no quintal enquanto criávamos nossos próprios brinquedos de latas usadas. Pensando bem, que porcaria foi aquela época, não imagino como consegui chegar até aqui sem nada do que existe hoje.

Porém, a escola não acompanhou a velocidade do desenvolvimento, ficou para trás, ela se manteve parada no tempo, mas claro, eu que sofri tudo o que relatei, estou fazendo a escola atual e, por mais que eu lute contra essa estagnação, sou vencido pelo sistema que impõe o mesmo padrão. Apenas a violência física foi retirada do currículo, mas a simbólica continua a todo vapor.

 
 
 
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